No livro “O que me faz pular” é apresentado um cotidiano onde a fala se torna inacessível e expressar necessidades básicas, como fome ou dor, torna-se tão distante quanto uma conversa casual. Na mente, um turbilhão de sons, como vinte rádios em frequências distintas, cria um ruído incessante, sem controle de volume. O alívio reside apenas no esgotamento do sono. Além disso, as sensações sensoriais se intensificam, transformando sons cotidianos em experiências extremas, como um ar condicionado soando como uma furadeira, enquanto vozes próximas se tornam inaudíveis.
O autismo severo impõe barreiras à comunicação verbal para muitas pessoas. No entanto, com a ajuda de sua mãe, de uma professora dedicada e seu próprio esforço, Naoki Higashida desenvolveu a habilidade de se comunicar através de uma prancha de alfabeto. Ele aponta para as letras, formando palavras que são transcritas por um assistente. Esse método não só lhe permitiu expressar-se na escola, através da poesia e da ficção, mas também ofereceu aos pais de crianças autistas uma visão esclarecedora sobre os comportamentos de seus filhos.
Naoki Higashida, nascido em 1992, ainda cursava o ensino fundamental quando seu livro foi publicado, ele tinha apenas 13 anos. É nesse contexto que somos convidados a mergulhar em sua realidade autista, revelando a complexidade e a profundidade de sua experiência.
12 Reflexões de Naoki Higashida: Uma Jornada de Compreensão
1. Como você escreve frases?
Naoki revela que utiliza um computador e uma prancha de alfabeto, uma invenção de sua mãe que lhe permite formar palavras apontando para as letras. Ele enfatiza que o aprendizado foi árduo, mas a necessidade de se expressar o impulsionou.
“O que me fez insistir nisso foi o pensamento de que para viver como um ser humano nada seria mais importante do que a capacidade de me expressar.”
Essa frase nos convida a refletir sobre a dificuldade de adaptação, levantando a hipótese de que algumas crianças atípicas poderiam vir de “lugares muito diferentes”, com características sensoriais e de comunicação distintas daquelas encontradas na Terra. Imagine humanos reencarnando em um planeta onde a comunicação é telepática e os sentimentos são neutros. Como seria a adaptação a um mundo como o nosso?
2. Por que você repete perguntas que acabaram de fazer?
“Eu juro que conversar é um trabalho muito duro! Para ser compreendido, é como se eu tivesse que falar numa língua estrangeira desconhecida a cada minuto de cada dia.”
A repetição de perguntas, segundo Naoki, é uma manifestação da dificuldade de processar e expressar pensamentos em um mundo que parece falar uma “língua estrangeira” constante.
3. Por que você faz coisas que não deve mesmo que já tenha sido advertido um milhão de vezes?
“Eu sou constantemente repreendido por fazer as mesmas coisas de sempre. Pode parecer que fazemos por maldade ou pirraça, mas, juro, não é o caso. Quando somos advertidos, nos sentimos mal por mais uma vez termos feito algo que já nos haviam avisado que era errado. Só que, quando aparece a oportunidade, já nos esquecemos do que aconteceu na última vez e somos levados a fazer tudo de novo. É como se algo fora de nós nos forçasse a isso.”
Naoki descreve um sentimento de impotência diante de comportamentos repetitivos, como se houvesse uma força externa que os impulsiona. Ele pede paciência e compreensão, reconhecendo a frustração que isso pode causar, mas implorando para que não desistam deles.
“Você deve estar pensando: “Ele nunca vai aprender?” Sabemos que estamos deixando vocês tristes e chateados, mas sinto dizer que é como se não tivéssemos escolha, e é isso. Mas, por favor, façam o que fizerem, não desistam de nós. Precisamos de sua ajuda.”
4. Devemos prestar atenção em cada palavra que você diz?
“Só porque alguns de nós consegue emitir sons ou pronunciar palavras não significa que aquilo que é dito é o que a pessoa quer dizer. Cometemos erros mesmo em situações básicas de “Sim ou Não”. É comum acontecer comigo de a outra pessoa entender ou interpretar errado o que acabo de dizer.”
Naoki alerta para a imprecisão da comunicação verbal para algumas pessoas com autismo. A dificuldade em se expressar pode levar a mal-entendidos, causando frustração e isolamento.
“Como mal sou capaz de manter uma conversa, consertar o que deu errado está além do meu alcance. Toda vez que isso acontece, acabo me odiando por ser tão inútil e me fecho como uma ostra. Por favor , não suponham que cada palavra que dizemos é aquilo que pretendemos dizer. Não conseguimos sequer usar gestos, mas queremos muito que vocês entendam o que se passa em nossos corações e mentes. E, no fundo, meus sentimentos são bem parecidos com os seus.”
Ele pede que as pessoas não presumam que suas palavras sempre refletem seus pensamentos, enfatizando que seus sentimentos são tão complexos quanto os de qualquer outra pessoa.
5. Por que você não consegue ter uma conversa normal?
Naoki descreve a sensação de aprisionamento em um corpo que não responde aos seus comandos.
“Não temos nem mesmo controle sobre nosso próprio corpo. Tanto ficar quieto quanto se mover quando nos pedido é um desafio – é como comandar um robô com defeito. Para completar, vivemos sendo repreendidos e não podemos nem nos explicar. Eu me sentia abandonado pelo mundo inteiro.”
A dificuldade em controlar o próprio corpo, somada à incompreensão e à falta de comunicação, gera um sentimento de isolamento profundo.
6. Por que você não faz contato visual quando está falando?
Para Naoki, o contato visual pode ser avassalador. Ele explica que, ao invés de olhar nos olhos, ele “olha para a voz” da pessoa, concentrando-se em todos os sentidos para compreender a mensagem.
“Para mim fazer contato visual com uma pessoa enquanto falo é um pouco assustador, daí tento evitar isso. Para onde, então, fico olhando? Olhamos para a voz da outra pessoa. A voz não são coisas visíveis, mas tentamos ouvir a outra pessoa com todos os nossos órgãos dos sentidos. Quando estamos completamente concentrados em entender o que você fala, nosso sentido de visão sai um pouco do ar. Se alguém não consegue discernir o que vê, é o mesmo que não ver nada.”
Ele sugere que chamar a pessoa pelo nome antes de iniciar a conversa pode ajudar a atrair sua atenção.
Naoki relata que não tem nenhum problema com contato físico, mas mesmo assim ele reflete sobre o motivo de autistas não gostarem de serem tocados. Para muitos autistas, ser tocado é como perder o controle sobre o próprio corpo, o que pode ser extremamente angustiante.
7. Por que você não faz as coisas assim que mandam?
Naoki descreve a sensação de ter seu corpo agindo de forma independente, como se estivesse possuído por outra entidade.
“Há situações em que não tenho como fazer nada, por mais que eu queira. É quando meu corpo fica além do meu controle. É como se todo o meu corpo, exceto minha alma, pertencesse a outra pessoa e eu não tivesse nenhum domínio sobre ele. Acho que vocês nunca seriam capazes de imaginar quanta agonia essa sensação causa. Nem sempre dá para perceber só olhando para uma pessoa com autismo, mas nós nunca sentimos que nossos corpos de fato nos pertencem, Eles estão sempre agindo sozinhos e escapando de nosso controle. Aprisionados lá dentro, lutamos o tempo todo para que façam o que mandamos.”
A dimensão espiritual da experiência de Naoki é inegável. Aos 13 anos, ele expressa um sofrimento constante pela falta de controle sobre o corpo, contrastando com a clareza da sua alma. Essa dualidade nos leva a questionar a natureza da consciência e da existência.
8. Você gostaria de ser “normal”?
Após desejar ser “normal” por muito tempo, Naoki chega à conclusão de que a aceitação é fundamental.
“Em poucas palavras, aprendi que cada ser humano, com ou sem deficiência, precisa se esforçar para fazer o melhor possível e, ao lutar para conseguir a felicidade, ele alcança. Veja bem, para nós o autismo é normal, então não temos como saber o que os outros chamam de “normal”. Porém, a partir do momento em que aprendemos a nos amar, não sei bem se faz diferença termos autismo ou não.”
Naoki compreende que o autismo é intrínseco à sua essência, e que a verdadeira felicidade emana do amor-próprio. Em um mundo onde muitos, mesmo desfrutando de uma vida aparentemente serena e saúde plena, padecem de paz interior e se apegam a trivialidades, a resposta de Naoki ressoa como um chamado à reflexão profunda. Sua sabedoria transcende as páginas do livro, confrontando-nos com a urgência de valorizar o que realmente importa.
9. Por que você pula?
Naoki descreve o ato de pular como uma libertação, uma forma de se conectar com o corpo e sentir a alegria de se mover livremente.

“Quando pulo é como se meus sentimentos rumaram em direção ao céu. Posso sentir melhor as partes do corpo, as pernas saltando, as mãos batendo e isso me faz muito bem. Pular é como se eu tivesse me libertando das cordas que me prendem. Quando salto, eu me sinto mais leve. Acho que o motivo pelo qual meu corpo é atraído para cima é que esse movimento me faz querer me transformar num pássaro e voar para algum lugar distante. Mas, restritos tanto por nós mesmos quanto pelos outros, só podemos piar, agitar as asas e saltitar pela gaiola. Ah, se ao menos eu pudesse bater asas e voar pelo céu azul, por cima das montanhas, para bem longe!”
O desejo de pular representa a busca por liberdade, escapando das amarras do autismo e das expectativas sociais. Após essa leitura, a imagem de crianças pulando evoca uma profunda empatia. Imaginar que, no fundo, elas anseiam por libertação, nos convida a repensar nossos olhares. Talvez todos nós precisemos, ocasionalmente, saltar em busca de leveza.
10. Por que você gosta de girar?
Naoki encontra conforto e beleza na repetição de movimentos giratórios.
“Só de olhar alguma coisa rodopiar, nos enchendo de uma alegria profunda durante o tempo em que ficamos ali admirando aquele movimento perfeito e regular. É sempre igual, cada vez que fazemos isso, coisas constantes nos confortam, e existe uma beleza nelas.”
A previsibilidade e a constância dos movimentos trazem uma sensação de segurança e bem-estar.
11. Por que você nunca para quieto?
O movimento constante é uma necessidade para Naoki, uma forma de manter a conexão com o próprio corpo e evitar a sensação de desconexão.
“Meu corpo está sempre em movimento. Não consigo ficar parado. Quando não me movo, é como se minha alma estivesse deixando o meu corpo, e isso me deixa tão nervoso e assustado que fico ainda mais irrequieto. Sinto-me mais relaxado quando estou em movimento, então demora um pouco para entender o que significa esse “acalme-se”.”
A necessidade de movimento é uma forma de autorregulação e de lidar com a ansiedade.
12. Quais são seus pensamentos em relação ao autismo?
Naoki apresenta uma visão poética e filosófica sobre o autismo, relacionando-o com a crise ambiental e a desconexão da humanidade com a natureza.
“Acho que os autistas nasceram fora do conceito de civilização. Claro que isso é só uma teoria que inventei, mas acho que há uma profunda crise, resultado de todas as matanças que existem no mundo e da devastação egoísta a que a humanidade submeteu o planeta. E, de alguma forma, o autismo surgiu daí. Mesmo que sejamos fisicamente parecidos uns com os outros, somos na verdade diferentes de muitas maneiras. Como se fôssemos viajantes que vieram de um passado muito, muito distante. E, se a nossa presença servir para ajudar as outras pessoas a lembrar o que é mesmo importante para a Terra, isso dará satisfação interior.”
A fala de Naoki me leva a questionar: de onde vêm essas almas que compartilham limitações tão específicas, como a aversão a sons altos e o impulso de pular? Existe uma conexão mais profunda que ainda não compreendemos? Ele se vê como um “viajante” de um passado distante, com a missão de lembrar à humanidade sobre a importância da conexão com a Terra.

Considerações Finais
O livro de Naoki é composto de 58 perguntas, neste artigo falamos de forma mais sucinta de apenas 12 questões, vale a pena conferir o livro na íntegra. Suas respostas são honestas e perspicazes, desafiam nossos preconceitos e nos convidam a repensar nossas noções de “normalidade”.
“O Que Me Faz Pular” é um livro que transcende a mera informação. É um convite à empatia, à compreensão e à aceitação da diversidade humana. Ao dar voz à sua experiência, Naoki Higashida nos presenteia com um legado de amor e respeito, mostrando que a beleza da vida reside na singularidade de cada indivíduo.
Que este artigo possa inspirar você a buscar mais informações sobre o autismo, a acolher as diferenças e a construir um mundo mais inclusivo e compassivo.
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Referências
- Higashida, Naoki. O Que Me Faz Pular: As Razões Interiores da Vida Autista. São Paulo: Intrínseca, 2013.